O que é um cross default?

Parte do vocabulário jurídico-financeiro, o “cross default” pode ser traduzido ao português como “inadimplência cruzada” ou “falha cruzada”. Trata-se de um tipo de cláusula de segurança presente em contratos financeiros, que antecipa o prazo de maturidade de um débito, principalmente em decorrência de outras inadimplências do devedor.

Essa cláusula, contudo, pode ser ainda mais abrangente, incluindo uma série de condutas de gestão que precisam ser seguidas pela parte que tomou o empréstimo, como uma forma de garantia. O cross default tem por objetivo proporcionar segurança ao credor e protegê-lo do popular “calote”.

Como funciona o cross default?

O cross default, ou a “inadimplência cruzada”, funciona como uma cláusula de segurança que protege os interesses do credor em contratos de empréstimo e financiamento.

Essa condição garante ao credor — quem empresta o dinheiro — o direito de exigir a devolução imediata de todas as parcelas em aberto caso o devedor “falhe” em pagar outros empréstimos que tenha contraído com terceiros. Daí o conceito de “inadimplência cruzada.

Além da inadimplência, o devedor também pode estar em situação de falha (default) caso deixe de cumprir quaisquer outras obrigações especificadas em contrato. Essas obrigações são chamadas de “covenants” e correspondem a compromissos assumidos pelo devedor como uma forma de garantia pelos recursos tomados por empréstimo.

O impacto do cross default, bem como os fatores que podem acionar essa cláusula, podem variar segundo o determinado no acordo em questão. Pode resultar, por exemplo, em um simples reajuste nas taxas de juros, ou até mesmo no adiantamento do vencimento, levando ao rompimento contratual.

Para que o cross default seja instigado é preciso que todas essas condições estejam detalhadas em contrato antes da assinatura do empréstimo.

Que tipo de inadimplência pode gerar o vencimento antecipado?

Diferentemente do que muita gente acredita, a inadimplência não corresponde apenas a atrasos em pagamentos. Esse termo pode ser utilizado de modo mais abrangente para nomear o descumprimento de qualquer obrigação financeira assumida.

 Logo, o vencimento antecipado em contratos com cláusulas de cross default pode ser acionado pelo não obediência do tomador do empréstimo de qualquer um dos “covenants” (exigências) acertadas previamente. 

 Além da “inadimplência cruzada”, propriamente dita, essa cláusula pode incluir outras exigências diversas como, por exemplo:

  • Alteração do objeto social da empresa;
  • Crescimento da taxa de endividamento;
  • Desapropriação ou confisco dos bens da empresa;
  • Irregularidades operacionais e ambientais;
  • Liquidação ou dissolução da empresa;
  • Não cumprimento de prazos de pagamento de juros ou principal;
  • Pedido de recuperação judicial;
  • Penalidades significativas impostas por autoridades reguladoras;
  • Problemas tributários;
  • Perda de registro junto a Comissão de Valores Mobiliários (CVM);
  • Rebaixamento de nota por agências de rating;
  • Revogação ou cancelamento de autorizações, ou concessões;
  • Transferência do controle acionário;
  • Inadimplência de outros empréstimos.

Importante ressaltar que, a depender dos pormenores do contrato, as inadimplências acima podem resultar em outras punições que não o rompimento do contrato e o adiantamento do vencimento. 

Por fim, esse recurso dificilmente é disparado de maneira automática. Normalmente, existe um prazo definido para que a empresa resolva suas pendências e se regularize.

Quais são alguns exemplos de cláusula de cross default no mercado de capitais?

O cross fault é comumente utilizado em contratos assinados por empresas que necessitam levantar recursos para financiar projetos de expansão. 

Esse tipo de cláusula costuma aparecer em contratos de financiamento bancário — incluindo empréstimos tomados com bancos de desenvolvimento, como o BNDES —, e principalmente os prospectos de dívida, quando a companhia em questão recorre a empréstimos no mercado de capitais.

A título de ilustração, a cláusula de cross default pode ser observada, por exemplo, nos prospectos de emissão de debêntures do Terminal de Contêineres de Paranaguá (TCP) e no do MRS Logística, como demonstrado na sequência:

TCP

No ano de 2016, a TCP, companhia que detém a concessão do Porto de Paranaguá, captou cerca de R$ 540 milhões em debêntures para financiar um plano de expansão, que incluía, entre outras coisas, o aumento do cais e da área de pátio destinada a contêineres.

Embora o contrato não utilize o termo “cross default”, esse tipo de cláusula pode ser observada no prospecto de emissão de debêntures como “Eventos de Inadimplemento que acarretam o vencimento antecipado automático”. No total, o documento lista 27 obrigações a serem cumpridas pela emissora para evitar o rompimento contratual e garantir a segurança dos debenturistas. Entre elas estão, por exemplo:

  • Atrasos maiores de dois dias úteis de valores devidos aos debenturistas;
  • Liquidação, dissolução ou decretação de falência da emissora, ou da fiadora;
  • Inadimplemento de qualquer outra obrigação financeira em valor, individual ou agregado, igual ou superior a R$ 15 milhões;
  • Vencimento antecipado de qualquer obrigação financeira de mesmo valor;
  • Alteração do objeto social da Companhia e que resultem na alteração de suas atividades principais;
  • Suspensão do registro de emissor de valores imobiliários junto a CVM;
  • Descumprimento de legislações e regulamentações ambientais e trabalhista aplicáveis ao projeto;
  • Não manutenção, durante todo o período de existência das debêntures, de um Caixa Livre Mínimo, especificado no contrato;
  • Captação de novas dívidas destinando ao pagamento de dividendos;
  • Reorganização societária ou transferência do controle da companhia.

MRS Logística

Outro exemplo semelhante é o da MRS Logística, empresa que possui a concessão da malha ferroviária da região Sudeste. Em 2015, a companhia recorreu ao mercado de capitais para levantar aproximadamente R$550 milhões.

Segundo o prospecto de emissão, essas debêntures, destinadas à revitalização de vias operadas pela companhia e a implantação de um sistema de controle de trens, estavam sujeitas a uma série de “eventos de vencimento antecipado” automáticos e não automáticos (aqueles com algum prazo para serem resolvidos). 

Ainda mais rígidas que as condições presentes no contrato da TCP, as cláusulas de cross default presentes neste prospecto da MRS incluem, por exemplo:

  • Rebaixamento de 2 dois ou mais notches — medida de grau de risco atribuída a papéis negociados no mercado de capitais — na classificação de risco das debêntures atribuída pela agência de rating correspondente;
  • Perda, caducidade, revogação ou anulação da concessão;
  • Transformação da emissora em sociedade limitada;
  • Declaração de vencimento antecipado de qualquer dívida da Emissora, cujo valor, individual ou agregado, seja igual ou maior a R$50 milhões;
  • Inadimplemento no pagamento de dívidas ou obrigações de igual valor, no prazo de três dias;
  • Inadimplemento de qualquer obrigação pecuniária não sanado em 20 dias;
  • Alterações no controle acionário, direto e indireto, da companhia;
  • Aplicação dos recursos obtidos, via debêntures, com outros fins que não aqueles listados no prospecto;
  • Alteração do objeto social, de modo que a emissora deixa de atuar essencialmente no transporte de carga.

Caso Americanas 

Para fechar, um caso ainda mais recente é o do rombo das Americanas. Atualmente em recuperação judicial, a empresa foi protagonista de um caso amplamente repercutido de fraude financeira em 2023. Segundo revelado, a empresa utilizava receitas fictícias para melhorar seu resultado operacional e mascarar dívidas e outros fatores que feriam covenants contratuais.

Um dos covenants burlados foi o indicador de dívida líquida/EBITDA, uma fórmula amplamente utilizada para medir a relação entre o crescimento da dívida e do resultado operacional de uma companhia. 

Presente em dois prospectos de emissão de debêntures da companhia, neste caso em específico, havia a obrigação, por parte da emissora, que a relação entre a alavancagem da rede varejista não deveria ser maior que 3,5 vezes a relação entre a dívida líquida e o EBITDA. Esse valor, contudo, pode ter ultrapassado em até 8 vezes esse número.

Qual a relação entre investimentos e o cross default?

No que tange aos investimentos especificamente, a cláusula de cross default é comumente empregada no mercado de debêntures, como uma maneira de proteger o investidor sempre que a saúde financeira da empresa emissora apresente sinais de não estar bem.

Na prática, o debenturista titular de papéis emitidos com essa cláusula pode exigir a devolução imediata de todo o valor aplicado, sempre que a empresa — ou mesmo uma de suas subsidiárias — esteja em atraso com outros credores. Ou ainda, quando a companhia descumprir quaisquer outros covenants explicitados no prospecto de emissão das debêntures em questão.

De modo geral, empresas que emitem títulos de dívida com esse tipo de cláusula, garantem prioridade de pagamento aos investidores detentores desses papéis. Nesse caso, pode acabar postergando seus pagamentos com fornecedores em detrimento da devolução dos valores aos debenturistas, por exemplo.

Se por um lado, essa cláusula garante mais segurança aos credores (investidores), do ponto de vista dos devedores, o acionamento do cross default pode resultar em consequências desastrosas. Como efeito dominó, a empresa que já está em dificuldades, pode piorar ainda mais sua situação ao ter que devolver antecipadamente os valores aos debenturistas. Em últimos casos isso pode até resultar na falência da empresa.

Mesmo que a situação não chegue a esse extremo, a companhia pode enfrentar mais dificuldades para obter novos empréstimos no futuro, além de passar a ser avaliada com maior grau de risco pelo mercado. 

Qual um exemplo de cross default em um financiamento bancário?

Embora, no Brasil, o cross default seja mais associado ao mercado de debêntures, essa cláusula também pode estar incluída em contratos de financiamento bancário, como exigência da instituição bancária pelo empréstimo dos valores solicitados.  

Nesse cenário, o banco pode encerrar o contrato e solicitar a devolução antecipada do dinheiro, em caso de que a empresa falhe no pagamento de suas dívidas com esta ou qualquer outra instituição financeira da qual seja credora.

Para melhor ilustrar, imagine uma situação hipotética onde uma empresa tenha financiamentos múltiplos, com diferentes bancos: um no Banco X,  mais um no Y, e outro junto ao Z. 

Se o contrato do banco X conta com uma cláusula específica de inadimplência cruzada, isso significa que, se a companhia não cumprir suas obrigações com o banco A ou quaisquer outras instituições financeiras, pode desencadear falhas em todos os seus empréstimos. Isso inclui também aqueles feitos com os bancos Y e Z. Em suma, é uma bola de neve de defaults, incluindo aqueles feitos com Y e Z.

Se o contrato do banco X conta com uma cláusula específica de inadimplência cruzada, isso significa que, se a companhia não cumprir suas obrigações com o banco A ou quaisquer outras instituições financeiras, isso pode desencadear falhas em todos os seus empréstimos, incluindo aqueles feitos com Y e Z. É, em suma, uma bola de neve de defaults.

Trazendo para a realidade, uma situação assim ocorreu em 2013, com a Mangels Industrial. Na época, enfrentando dificuldades financeiras, a empresa fornecedora da indústria automobilística acabou forçada à recuperação judicial, após diferentes bancos manifestarem a intenção de antecipar o valor das parcelas em aberto. 

Pouco mais de ano após entrar em regime de recuperação, a companhia acertou uma renegociação com seus credores no valor de R$ 430 milhões. Entre eles estavam um consórcio de bancos internacionais e um grupo de sete bancos nacionais.